
Fundada em 2016, a Nuvem Vitória desenvolve um trabalho voluntário único no mundo. Todas as noites, as equipas de voluntariado contam histórias de embalar a crianças que estão internadas nas pediatrias dos hospitais, longe dos seus ambientes familiares. Estivemos à conversa com Fernanda Freitas, fundadora da Associação.
Como surge a ideia de criar a Nuvem Vitória?
Eu sou contadora de histórias voluntária em ambiente pediátrico há mais de 15 anos. Quando abri a minha empresa, apercebi-me que os horários pedidos pelos hospitais eram incompatíveis com a minha nova dinâmica empresarial e que o único período de tempo livre que tinha era durante a noite.
Numa tarde, em abril de 2016, e em conversa com o Pedro Dias Marques, apercebemo-nos da inexistência de respostas para voluntariado à noite em ambiente pediátrico. Juntamos os nossos saberes e decidimos criar a Associação em agosto de 2016.
Da ideia à concretização, quanto tempo demorou? Como foi este processo?
A ideia esteve vários meses em processo de planificação e implementação – e, claro, dependia da aprovação da equipa de Pediatria de um hospital. Após várias reuniões, tivemos autorização para desenvolver um projeto-piloto em novembro de 2016, com uma periocidade diária (de segunda a sexta-feira), e com implementação num piso selecionado do Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em colaboração direta com os profissionais de saúde, educadoras e auxiliares.
Perante o feedback obtido por parte das crianças (nosso principal avaliador), famílias e toda a equipa de profissionais que, também de uma forma diária, atuaram como parceiros fundamentais neste projeto, foi com muito orgulho e um enorme sentido de responsabilidade que começamos o processo de alargamento a mais alas, neste e noutros hospitais.
Qual a vossa missão?
A Associação Nuvem Vitória desenvolve um trabalho voluntário único no mundo. Todas as noites, as equipas de voluntariado contam histórias de embalar a crianças que, por motivos de saúde (ou outros), estão longe dos seus ambientes familiares.
A plataforma #QueroDormir integra a missão da Nuvem Vitória no desenvolvimento e promoção de materiais, ferramentas e competências que propiciem um ambiente favorável a uma noite de sono recuperadora.
Cientes de que existe muita informação dispersa (e por vezes errada) sobre o sono, nas várias idades do ser humano, reunimos todo o material nacional e internacional numa mesma página, abordando questões como os espaços onde dormimos, as patologias mais frequentes, os hábitos que não nos deixam dormir e as rotinas para adormecer. Sempre com acesso a estudos científicos.
Com quantos voluntários trabalham? Como gerem esta articulação?
Atualmente, temos 514 voluntários inscritos. Para além de uma equipa de coordenação (uma por núcleo), com o apoio da CGI e da Salesforce, foi desenvolvida uma plataforma de gestão de voluntários que nos permite articular as disponibilidades de cada um(a). No dia a dia, cada voluntário é acompanhado de perto através de um grupo de WhatsApp onde recebe todas as informações necessárias para que possa fazer o seu voluntariado nessa noite - desde o nome da sua dupla (trabalhamos sempre em pares) ao número previsto de crianças e média de idades, de forma a poder organizar o seu saco de histórias.
Em quantos hospitais trabalham?
A Nuvem Vitória está presente no Hospital de Braga, no Hospital São João e Joãozinho (Porto), no Hospital Santo André (Leiria), no Hospital de Vila Franca de Xira, no Hospital de Santa Maria (Lisboa), no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (Cascais) e no Hospital Garcia de Orta (Almada).
Temos também equipas de voluntários a contar histórias nas Casas Ronald McDonald (Lisboa e Porto) e no Lar Escola António Luís de Oliveira (Lisboa). A partir de dezembro estaremos também no Hospital Dr. José de Almeida (Cascais).
Como é que a Nuvem Vitória ajuda, também, os pais?
A Nuvem Vitória pretende estimular o envolvimento dos pais, familiares e cuidadores na área da leitura e da narração oral, em diferentes contextos, procurando elevar o nível de literacia das populações bem como estreitar os laços familiares e com os cuidadores em geral. Permite também a criação de um momento de relaxamento e descontração durante o angustiante período em que decorre o internamento da criança.
Como é que as pessoas se podem candidatar para serem contadoras de histórias?
As nossas equipas são formadas num primeiro grande momento e em posteriores momentos de reforço. Uma vez que são fixas, pois funcionamos com o rigor do compromisso, as candidaturas são abertas sempre que a necessidade se verifica - normalmente na abertura de novos núcleos. As pessoas interessadas deverão seguir-nos nas redes sociais, onde fazemos a divulgação destes períodos de recrutamento. Somos muito exigentes no processo de formação: mais do que pessoas com jeito para contar histórias, procuramos pessoas rigorosas, com sentido de compromisso e, sobretudo, ultra-pontuais!
Tem noção, mais ou menos, do número de histórias contadas até hoje?
Até setembro 2019 foram feitas 16411 horas de voluntariado e foram contadas 42501 histórias.
Como avaliam o impacto da Nuvem Vitória?
Além do projeto-piloto que nos deu uma noção mais concreta do impacto que a Nuvem Vitória poderia ter, recentemente foi elaborado um estudo – apresentado em setembro no World Sleep Summit em Vancouver – junto das crianças hospitalizadas, dos pais, dos cuidadores e até dos próprios voluntários.
Os resultados preliminares, baseados numa pequena amostra de pais e cuidadores, indicam que as crianças hospitalizadas a quem foram lidas histórias de embalar sentem-se felizes (46,7%) ou muito felizes (40%) após cada sessão de leitura.
Além disso, verificou-se uma menor resistência ao momento de dormir nos dias em que as crianças ouviram histórias, quando comparados com os dias em que não houve leitura de história e com as noites passadas em casa.
Será que a Fernanda nos pode falar um bocadinho de si? Qual o papel do voluntariado na sua vida?
Eu comecei a trabalhar como voluntária na Fundação do Gil, mas a minha ligação com o voluntariado estreitou-se em 2011, quando fui nomeada Presidente Nacional do Ano Europeu do Voluntariado. Já não consigo imaginar a minha vida sem esta parte: não por achar que tenho qualquer obrigatoriedade de "devolver" à sociedade, mas por sentir que este "ordenado emocional” me completa.
Como gostaria de ver a Nuvem Vitória daqui a 10 anos?
Idealmente, não gostaria! Num mundo perfeito, não haveria crianças internadas daqui a 10 anos. Porém, certamente que teremos de continuar o nosso trabalho e, de preferência, com núcleos de voluntários espalhados pelos vários distritos do país.
*Entrevista publicada originalmente em janeiro de 2020 na edição #01 da Revista De Mãe para Mãe.